domingo, 10 de janeiro de 2010

MEMORIA - "5. A volta"


5. A volta
E vinte anos -sobretudo se correspondem à nossa fase de afirmação e desenvolvimento profissional- contam muito. Contam ainda mais se o país a que regressamos, apesar de ter tido o seu movimento geral determinado pelas mesmas tendências que regeram o da América Latina, participando, pois, do mesmo processo de hipertrofia das desigualdades de classe, da dependência externa e do terrorismo de Estado que a caracterizou, nesse periodo, o fez acentuando seu isolamento cultural em relaçào a ela e lançando-se a um consumo compulsivo das idéias em moda nos Estados Unidos e na Europa.
Em minha segunda visita ao Brasil, a meados de 1980, atendendo a convite da Escola Interamericana de Administração Pública, eu tomara já consciência disso. Com efeito, ao participar de uma mesa redonda com economistas do MDB, no Rio, havia sido, não sem surpresa, o único a contestar a tese de que o Brasil, sob a ditadura militar, ampliara as bases de sua autonomia no plano internacional e dispunha de condiçôes invejáveis para enfrentar os desafios da década de 1980. Os acontecimentos posteriores à moratória mexicana de 1982, para não falar da trajetória seguida depois pelo país, levariam a maioria deles a modificar esse ponto de vista. Mas a revisão não foi suficiente para transformar qualitativamente o pathos cultural que a ditadura impôs à elite intelectual brasileira.
Para que esta se tornasse no que hoje é concorreu decisivamente, além do exílio sofrido pela intelectualidade rebelde dos anos 60, uma política coerente, baseada num conjunto de instrumentos: a censura, que erigiu uma barreira à rica produção sociológica, econômica e política latino-americana desse período; a criação de novos meios de comunicação, em particular a televisão, funcionais ao sistema; a intervenção nas universidades, que expulsou professores e alunos, mutilou os planos de estudo e, através da privatização, degradou até o limite a qualidade do ensino; e a destinação de gordas verbas para a pesquisa e a pós-graduação, implicando novos critérios para a seleção de temas e o direcionamento das bolsas de estudo para os Estados Unidos e alguns centros europeus. A análise da política cultural da ditadura, iniciada com os acordos MEC-USAID, e de suas conseqüências ainda está por ser feita, representando um ajuste de contas indispensável para que o Brasil possa descobrir sua verdadeira identidade.
Essa política teria resultado, porém, menos exitosa se mais e mais intelectuais não houvessem sido cooptados pelo sistema, inclusive aqueles que se situavam em oposição ao regime. Ocorreu no país um fenômeno curioso: intelectuais de esquerda, que chegavam a ocupar posiçôes em centros acadêmicos, ou que os criavam com o fim precípuo de ocupar posiçôes, estabeleciam à sua volta uma rede de proteção contra o assédio da ditadura e utilizavam sua influência sobre a destinação de verbas e de bolsas para consolidar o que haviam conquistado, atuando com base em critérios sumamente grupais. Entretanto, o que aparecia, originalmente, como autodefesa e solidariedade tornou-se, com o correr do tempo - principalmente ao ter início a desagregaçào do regime, a fins dos anos 70 - uma vocação irresistível para o corporativismo, a cumplicidade e o desejo de exclusão de todo aquele - qualquer que fosse sua conotação política - que ameaçasse o poder das pessoas e grupos beneficiários desse processo. Por outra parte, no ambiente fechado em que sufocava o país, resultava proveitoso, para os que nele podiam entrar e sair livremente, monopolizar e personalizar as idéias que floresciam na vida intelectual da região, adequando-as previamente aos limites estabelecidos pela ditadura. Neste contexto, a maioria da intelectualidade brasileira de esquerda colaborou, de maneira mais ou menos consciente, com a política oficial, fechando o caminho à difusão dos temas que agitaram a esquerda latino-americana na década de 1970, marcada por processos políticos de grande transcendência e concluída com uma revolução popular vitoriosa.
O fenômeno não era exclusivamente brasileiro ou, com o passar do tempo, foi deixando de sê-lo. Após os movimentos de 1968, a Europa e os Estados Unidos viram aguçar-se as lutas de classes e tiveram que enfrentar iniciativas populares e de esquerda, que desafiavam o sistema dominante. Mencionamos já que, a meados dos 70, o resultado dessas lutas passou a ser favorável às forças do stablishment. Mencionamos, também, que, desde o golpe chileno de 1974, a social-democracia européia passou a atuar no cenário intelectual latino-americano, no que fora precedida pelas fundaçôes de pesquisa norte-americanas e acompanhada pelas instituiçôes culturais financiadas pelas igrejas e pela democracia cristã. No Brasil e no resto da América Latina, a disputa pela obtenção dos recursos daí advindos reconstituiu a elite intelectual sobre bases totalmente novas, sem qualquer relação com as que - fundadas na radicalização política e na ascensão dos movimentos de massas - a haviam sustentado na década de 1960. Análise exemplar disso foi realizada por Agustín Cueva, em ensaio incluído em seu livro América Latina en la frontera de los años 90, assim como por James Petras, no artigo "La metamorfosis de los intelectuales latinoamericanos" (Brecha, Montevidéu, 1988).
Como quer que fosse, esse era o país ao qual eu devia me reintegrar. É natural que, chegando, me aproximasse de antigos companheiros de lutas e de exílio, aos quais as eleiçôes de 1982 haviam proporcionado novo campo de ação, em especial Darcy Ribeiro, Neiva Moreira e Theotônio dos Santos. Darcy, então preocupado com introduzir uma cunha na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com o fim de promover a recuperação desse autêntico "elefante branco", solicitou-me projeto de um centro de estudos nacionais, a ser criado ali. Feito isso, participei, com ele, das negociaçôes com a reitoria d UERJ e da convocatória a destacados intelectuais de esquerda. A resistência oposta pela universidade levou, porém, o projeto ao fracasso, tendo ela conseguido manter-se intocável durante toda a gestão de Brizola.
Com Neiva Moreira, entrei a colaborar na redação do Jornal do País, de tiragem quinzenal, assumindo a direção de um suplemento de seis páginas; dele sairam, sob minha direção, em 1984, uns sete ou oito números - dedicados a questôes como as relaçôes Brasil-Estados Unidos, a indústria da informática, a crise da universidade, a proliferação das seitas religiosas, a imprensa alternativa, as implicaçôes ecológicas da represa de Tucuruí - mas nossas diferenças de critério, somadas à crise que se abateu sobre o jornal, levaram-me a abandonar o trabalho. Em 1985 e 1986, editamos juntos uma revista trimestral,Terra Firme, da qual sairam dois números e que se estiolou, ante as pressôes da campanha eleitoral de 1986. Com Emir Sader e José Aníbal Peres de Pontes, tentei ainda a criação de uma revista teórica, sem êxito. A essa fase, marcada pela tentativa de criar meios para chegar ao grande público brasileiro, pertence o meu ensaio "Possibilidades e limites da Assambléia Constituinte", incluído na coletânea organizada por Emir para a Brasiliense, sob o título Constituinte e democracia no Brasil hoje.
Foi com Theotônio, que ocupava um cargo de direçào na Fundação Escola de Serviço Público do Rio de Janeiro, que encontrei condiçôes de trabalho mais favoráveis. Orgão secundário no esquema administrativo do Rio, a FESP pode atuar com certa liberdade, embora suas iniciativas, por ciúmes e rivalidades com gente da equipe de governo, tenham sido em geral mal recebidas e, no máximo, toleradas. Assumi ali a coordenaçào de projetos acadêmicos, cabendo-me, precipuamente, ocupar-me da criação de um curso de graduação em administraçào pública.
A idéia era interessante, mas ia contra a corrente. Após a iniciativa pioneira da EBAP, nos anos 50, os cursos de administração haviam proliferado no país, sobretudo (pelo seu baixo custo) na área privada do ensino, mas inteiramente voltados para a administração de empresas. A própria Fundação Getúlio Vargas descaracterizou, primeiro, a EBAP, suprimindo o regime de tempo integral, assim como as bolsas de estudo, além de aligeirar no curriculum a forte carga de ciências sociais, para, finalmente, extingui-la, a princípios da década de 1980. Após concluir o projeto do Curso Superior de Administração Pública (CESAP) e acompanhar sua tramitação, até vê-lo autorizado pelo Presidente da República, a princípios de 1986, assisti ao seu empantanamento, por falta de recursos, e à sua inviabilização, com a derrota de Darcy Ribeiro nas eleiçôes para governador do Rio. É justo destacar o apoio entusiasta que tive, nessa empresa, de Newton Moreira e Silva, então diretor da FESP, e de Yara Coelho Muniz, minha secretária, colaboradora e amiga.
Nesse meio tempo, aproveitando o espaço de que dispunha Theotônio e contando com a colaboraçào de uma equipe, em que se destacavam Hélio Silva, Gustavo Senechal, Bolívar Meireles e Paulo Emílio, foi possível fazer alguma coisa -para o que concorreu o apoio da Universidade das Naçôes Unidas e do próprio CNPq, a partir do momento em que José Nilo Tavares, rompendo a circularidade corporativa típica da instituição, assumiu ali um cargo de direção. Apoiados nisso, procuramos ventilar o ambiente intelectual brasileiro, colocando em cena temas, personagens e enfoques relevantes nos círculos internacionais de esquerda, mas que vinham sendo sistematicamente excluídos dos eventos científicos e culturais do país. Embora o resultado tenha sido muito inferior ao que esperávamos, vale à pena resenhar algumas das iniciativas mais interessantes.
Em 1984, realizou-se, no Hotel Glória, o Congresso Internacional de Economistas, promovido pela FESP e pelas Faculdades Integradas Estácio de Sá, ao que compareceram, entre outros, Andre Gunder Frank (que não vinha ao Brasil desde 1964) e Immanuel Wallerstein. Coube-me pronunciar ali uma conferência sobre "Crise e reordenamento da economia capitalista mundial", na qual destacava a tendência à formação de blocos econômicos e indagava, nesse contexto, sobre o futuro da América Latina. Durante o Congresso, fui apanhado de surpresa por jornalistas da revista Isto É, daí resultando uma reportagem sensacionalista, em que eu apareci, uma vez mais, como grande responsável pela luta armada no Brasil.
Em 1985, no marco de uma pesquisa sobre movimentos sociais, patrocinada pela UNU, teve lugar um seminário nacional, onde apresentei um paper sobre o movimento operário no Brasil, que se publicou (com os outros materiais) na revista que criamos na FESP, Política e Administração, e se republicou emCuadernos Políticos; essa linha, que teve outros desdobramentos, culminaria com o seminário sobre movimentos sociais e democracia no Brasil, realizado em 1986, a que se associou também CLACSO. Ainda em 1985, com a UNU, a FESP co-patrocinou o seminário internacional sobre "O papel do Estado na segurança da América Latina diante da ameaça à paz", de que participaram, entre outros, José Agustín Silva Michelena, Orlando Fals Borda, Héctor Oquelí e Heinz R. Sonntag- tendo eu apresentado um paper relativo à Geopolítica latino-americana, em que aproveitava para examinar o estado em que se encontrava a questão do subimperialismo; e outro, sobre "Crise internacional, reordenamento da economia mundial e estratégias do desenvolvimento científico e tecnológico", onde fiz uma conferência sobre "O pensamento econômico na América Latina".
O maior acontecimento de 1986 e, sem dúvida, o mais marcante em meu período na FESP, foi o Curso Comemorativo "Trinta Anos de Bandung", a nível de pós-graduação, sob os auspícios da UNU - que contava realizar outros semelhantes na India e no Egito, o que não se efetivou plenamente. Com bom financiamento e a colaboração eficiente de Flávio Wanderley Lara, pudemos trazer treze bolsistas africanos e latino-americanos, aos quais se somaram cerca de sete brasileiros, assim como excelentes conferencistas, entre os quais Harry Magdoff, Elmar Altvater, Otto Kreye e Tomás Vasconi. Meu curso, relativo a "Teorias do desenvolvimento econômico e da dependência", permitiu-me sistematizar os resultados a que chegara minha pesquisa sobre o tema.
Aproveitando, em parte, a infra-estrutura desse curso e o apoio do CNPq e da Fundação Alexandre de Gusmão, realizamos, em conjunto com a FLACSO, o curso de pós-graduação "O Brasil e a América Latina no sistema internacional", de que participaram também Edelberto Torres-Rivas, René Dreyfus, Roberto Bouzas, Monica Hirst, Vania Bambirra, Antonio Carlos Peixoto, Luiz Alberto Moniz Bandeira e outros. Nele, entre cursos e conferências, tratei da integração latino-americana e das relaçôes internacionais do Brasil e orientei duas dissertaçôes -sobre a ação do IBAD no Brasil e sobre o subimperialismo brasileiro na Bolívia. Entre os eventos internacionais que a FESP promoveu, cabe ainda mencionar o XVI Congresso Latino-Americano de Sociologia, com apoio da UERJ, no qual coordenei o seminário sobre "Imperialismo, colonialismo e democracia" e apresentei o paper sobre O movimento operário e a democracia; e o II Simpósio Latino-Americano de Política Científica e Tecnológica, onde a minha intervenção versou sobre progresso técnico e emprego.
A longa estada no exterior a que o exílio me havia forçado levou-me, ao meu regresso, a me retrair em relação à participação em eventos no estrangeiro. Em 1985, porém, atendendo ainda a compromissos anteriores, viajei ao México, a Cuba e a Porto Rico. No México, tratava-se de um seminário promovido pelo Serviço Universitário Mundial (SUM), sobre problemas da democracia; o paper que apresentei, La lucha por la democracia en América Latina, foi publicado por Cuadernos Políticos e, mais tarde, na revista da Universidade de Brasília, Humanidades. A viagem a Havana fez-se no quadro do encontro internacional promovido pelo Presidente Fidel Castro, sobre a dívida externa do Terceiro Mundo, que teve caráter mais político do que acadêmico. Finalmente, em San Juan, participei do II Congresso de Sociologia de Porto Rico, pronunciando conferência sobre a crise do pensamento latino-americano, além de outras, sobre temas variados, em faculdades e institutos de universidades locais.
Em 1986, tendo já em perspectiva o desligamento da FESP, como conseqüência do resultado das eleiçôes estaduais, recebi comunicação do reitor da Universidade de Brasília, Cristóvam Buarque, informando-me sobre gestôes em curso para minha reintegração à instituição. Tratava-se de uma mudança radical na política por ela adotada a esse respeito, havendo a UnB ignorado inclusive a solicitaçào que eu fizera nesse sentido, após a anistia de 1979. Graças ao empenho do novo reitor e ao esforço e dedicação da professora Geralda Dias, do Departamento de História, assim como do professor José Geraldo Júnior, que responderam pelo levantamento e análise dos fatos, fui um dos primeiros de uma numerosa lista de professores e funcionários reintegrados, o que veio a reparar uma das muitas arbitrariedades cometidas pela ditadura. Em março de 1987, já demitido da Fesp pela nova administração nomeada pelo governador Moreira Franco, transferi-me para Brasília.
Adscrito ao Departamento de Ciência Política e Relaç es Internacionais, eu iria reencontrar na UnB velhos amigos, como Vania Bambirra, Theotônio dos Santos, Geralda Dias, Luiz Fernando Victor, entre outros, além de fazer novas amizades, em especial Adalgisa Rosário, Argemiro Procópio, Cristóvam Buarque, Luiz Pedone e David Fleischer. Assumi, após um semestre de adaptação, a carga docente regular, que impoe, semestralmente, a realização de um curso de graduação e outro de pós-graduação. Entre 1987 e 1989, isso implicou, no primeiro caso, ministrar os cursos de Mudança Política no Brasil e Teoria e Metodologia Marxista I e II (estes últimos, criados por sugestão minha) e, no segundo caso, os de Teoría Política do Estado, Tópicos Especiais em Teoria Política e Estado, Elites e Sociedade. Exerci, também, a função de coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência Política, assim como mandatos como membro do Conselho Acadêmico do Programa de Doutorado em América Latina, patrocinado pela UnB e pela FLACSO, e como membro do Conselho Editorial da Universidade de Brasília. Participei, além disso, de bancas de concurso público para professor e de exame de projetos de teses de graduação e pós-graduação, além de orientar teses de mestrado em Ciência Política, uma das quais já aprovada.
Quanto à participação em eventos, nesse período, cabe destacar, a nível da UnB, o seminário sobre "A perestroika: implicaçôes para a sociedade soviética e o sistema de relaç es internacionais", realizado em conjunto com a USP, a UFRJ e o Cebrade, como comentarista a um dos conferencistas soviéticos, em 1988, e no seminário "As perspectivas da Europa unificada e a integraçào latino-americana", promovido pelo Departamento de Ciência Política e o Instituto Goethe, em 1990, quando pronunciei conferência sobre "O desenvolvimento da economia mundial e a integração latino-americana". Fora da UnB, além de conferências e mesas redondas na UFRJ e na UERJ, em 1987, cabe mencionar a minha participação em seminários do ILDES, em São Paulo e no Rio, em 1988 e 1989, sobre tema de pesquisa que referirei adiante. No plano internacional, participei, em 1987, de seminário em Manágua sobre "Crise e alternativas da América Latina", patrocinado pela Frente Sandinista de Libertaçào Nacional, sendo o paper que ali apresentei - Democracia y socialismo - incluído no reading que, com trabalhos de Pablo González Casanova, Martha Harnecker e Tomás Vasconi e conservando o nome do seminário, se publicou em Montevidéu, no ano seguinte; e, em 1989, fiz uma conferência sobre a economia mundial e a integraçào latino-americana, na Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade de Buenos Aires.
No curso desse período, acentuou-se uma tendência que se fizera presente depois da minha volta ao Brasil e de que só recentemente tomei consciência, a qual é identificada com agudeza por Agustín Cueva, em seu ensaio já mencionado. Trata-se da substituição de atividades mais abertas, que buscam comunicação com um público mais amplo, visando a incidir no processo de formação de opinião, e que se expressam em livros, ensaios e artigos de alcance geral, por atividades de caráter mais especializado, circunscritas a grupos fechados, cuja forma de expressão natural é o relatório ou o paper, e que só eventualmente transcendem ao público, através de matérias jornalísticas (como a entrevista que me fez Emir Sader para a revista Senhor, em 1987, onde eu criticava a indústria brasileira, por sua falta de competitividade e seu parasitismo em relação ao Estado). Nesta linha, entre 1986 e 1989, realizei três pesquisas.
Com José Luís Homem da Costa e Rodrigo Cárcamo de Olmos, levei a cabo um estudo para o ILDES, cujo relatório, concluído em 1986, intitulou-seDesenvolvimento econômico, distribuição da renda e movimentos sociais no Brasil. Além de atualizar-me em relação à polêmica sobre a distribuição da renda, que teve lugar no Brasil na década de 1970, essa pesquisa levou-me à interessante constataçào de que a aceleraçào da concentraçào da renda, iniciada nos 60, perde força a fins dos 70 e princípios dos 80, por obra, a meu ver, do ascenso dos movimentos sociais que se registra, então, no país. O fortalecimento do bloco burguês, na chamada Nova República, a retraçào dos investimentos produtivos em proveito da especulaçào financeira e as ofensivas lançadas contra os trabalhadores -com destaque para os planos econômicos que se iniciam em 1986- reverteram, ao que tudo indica, essa tendência.
Ainda naquele ano, tendo o CNPq aprovado um projeto meu, relativo à indústria automobilística, dei início ao seu desenvolvimento, que me ocupou até 1989. Em 1987, apresentei relatório da primeira parte, com o nome de Crise e reconversão da indústria automobilística mundial, estando em processo o relatório final, que analisa o impacto disso no Brasil e que me permitiu conhecer melhor o desempenho de um setor-chave da economia nacional e suas relaç es financeiras e tecnológicas com os grandes centros. Convém observar que - dentro da política do CNPq de repartir os magros recursos de que disp e de maneira extremamente parcimoniosa, de tal maneira que, atendendo a muitos, não subvenciona nunca um projeto de maneira suficiente - vi-me forçado a modificar o plano inicial, que consistia em incluir na análise também o México e a Argentina, aproveitando meus contactos e meu conhecimento sobre esses países.
A terceira pesquisa, finalmente, deveu-se à iniciativa do ILDES no sentido de patrocinar um amplo estudo sobre o déficit público brasileiro, o qual integrou projetos de pesquisadores do Rio, de São Paulo e de Brasília -entre eles, Eduardo Suplicy, Paulo Sandroni, Maria Sílvia Bastos, Vitor Mereje, Theotônio dos Santos e Vania Bambirra. Nesse marco, tomei como tema a política de incentivos e subsídios à exportação de manufaturados, do que resultaram dois relatórios: um, preliminar, que estimava, de modo geral, o efeito desses incentivos e subsídios sobre o déficit público, intitulado A política de promoção às exportaçoes e o déficit público no Brasil, apresentado a fins de 1988; e outro, em que analisei em detalhe as políticas governamentais que deram origem origem à substituição de importaçoes, na década de 1950, a tentativa pós-64 de suprimi-las em favor da promoção ãs exportaçoes e, enfim, a combinação de ambas, principalmente após o choque do petróleo de 1973, o que resultou no protecionismo exacerbado e na sangria em grande escala de recursos públicos, em favor dos grupos empresariais privados -relatório este apresentado em 1989, com o título Estado, grupos econômicos e projetos políticos no Brasil, 1945-1988. É justo registrar aqui a dedicação que, em todas essas pesquisas, demonstrou minha assistente, Maria do Socorro F. Carvalho Branco, assim como Luciana de Amorim Nóbrega.
A carga de trabalho que essas pesquisas acarretaram, e que se somava a minhas atividades acadêmicas normais, foi sendo, aos poucos, percebida como um mecanismo de drenagem de minha vida intelectual, em favor de minha refuncionalização ao sistema científico-cultural vigente no país. De fato, ela implicava que as inquietaçôes e objetivos de pesquisa, derivados de minha própria trajetória de trabalho, assim como a seleção de temas de estudo a que ela tende, fossem deslocados do centro de minha ocupação principal, passando a receber um tratamento marginal, lento e penoso, quando recebiam algum. Uma virose que me acometeu em 1989, reduzindo minha capacidade de trabalho durante boa parte do ano, e as greves que agitaram então a UnB levaram-me a postergar a busca de uma solução ao problema, tanto mais que, em conseqüência das greves, o segundo semestre letivo daquele ano entrou 1990 adentro. Assim, recém em maio foi-me possível suspender minhas atividades acadêmicas, em função de licença sabática, para - renunciando também à busca de financiamento para meus projetos de pesquisa - dedicar-me a repor em seus trilhos minha vida intelectual. Este é o ponto em que me encontro.

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