sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

MEMORIA - "3. O segundo exílio"


3. O segundo exílio
Meu ingresso a território chileno fez-se com alguma dificuldade, contornada pela pressão dos amigos que ali me esperavam -em particular Theotônio dos Santos e Vania Bambirra- juntamente com a intervenção de políticos -como o então senador Salvador Allende- e da Universidade de Concepción e sua Federação de Estudantes. Efetivamente, ainda no México, eu fora contactado pelo presidente desta, Nelson Gutiérrez -que me conhecia por meus trabalhos e pelas informaçôes de amigos brasileiros, entre os quais Evelyn Singer, que lecionava naquela universidade e militara comigo no Brasil- o qual me comunicara a existência de uma vaga de professor titular no Instituto Central de Sociologia e me consultara sobre meu interesse em ocupá-la. Como já então eu via o Chile como possível alternativa à Argélia, respondi afirmativamente, sendo meu currículo incluído no concurso aberto para essa vaga e aprovado. Eu chegava, pois, ao pais com um contrato na mão.
Permaneci em Santiago cerca de três meses, aproveitando as férias escolares, e não cheguei a desligar-me inteiramente da cidade, pois mantive ali um pequeno apartamento, durante todo o tempo em que estive em Concepción. Não me seduzia, com efeito, a perspectiva de me fixar nesta última, acostumado como estava às grandes cidades, além do que Santiago apresentava para mim mais atrativos. Ali estavam grandes amigos meus, como Vania e Theotônio, junto a uma vasta colônia de exilados brasileiros, que enquanto estive no Chile, contou, em momentos diversos, com Darcy Ribeiro, Almino Afonso, Guy de Almeida, José Maria Rabelo, Maria da Conceição Tavares; em pouco tempo, eu faria novas amizades entre os chilenos e hispano-americanos, como Tomás Vasconi, Inés Reca, Pío García, Orlando Caputo, Roberto Pizarro, Aníbal Quijano, reencontrando também Andre Gunder Frank, que lecionava na Universidade do Chile, e sua esposa, Marta Fuentes. Por outra parte, Santiago vivia um momento de intensa mobilização política, que resultaria, nas semanas imediatas à minha chegada, na constituição da Unidade Popular, frente política que reunia as forças de esquerda -à exceção do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR)- e na designação de Allende para seu candidato às eleiçôes presidenciais do ano seguinte.
Apesar de haver recebido uma proposta de trabalho do Instituto de Administração (INSORA), com o qual eu entrara em contacto ainda no México, e contar com o interesse do Centro de Estudos Sócio-Econômicos (CESO) da Faculdade de Economia, da Universidade do Chile, trasladei-me, em março de 1970, a Concepción. Ia disposto a ficar pelo menos um ano, em reconhecimento à solicitude que me manifestara a Federação de Estudantes.
Se o nível de politização era alto em Santiago, adquiria ali conotaçôes explosivas. Uma das principais cidades do país, de antiga tradição industrial e intimamente ligada aos centros mineiros de Lota e Coronel, berço do Partido Comunista, Concepción dera origem, em 1965, a uma nova força de esquerda, o MIR -desprendimento da Juventude Socialista, com participação destacada de uma corrente intelectual trostskista- liderado por uma plêiade de jovens brilhantes, principalmente Miguel Enríquez, Luciano Cruz e Bautista Van Schowen. Com Luciano como presidente, a Federação de Estudantes dera início, de maneira espetacular, à reforma universitária, que agitava ainda o país quando da minha chegada, a que se seguira o catapultamento do MIR ao plano nacional, em 1969, pela adoção -após a ruptura com os trotskistas- de uma ativa política de luta armada. Um pouco mais jovem, Nelson Gutiérrez, agora ex-presidente da FEC, acabaria por se integrar ao grupo dirigente, onde se destacou pela sua inteligência, sua inteireza revolucionária, sua inesgotável sede de saber e sua notável capacidade oratória.
Num ambiente dessa natureza, é difícil distinguir o que foi atividade acadêmica e o que foi atividade política. Minha vida pessoal foi, de certo modo, anulada, em benefício de uma prática pedagógica incessante, nas salas de aula, nas reuniôes com militantes, durante as refeiçôes, nas tertúlias em minha casa, nas visitas a dirigentes e bases operárias de Tomé, Lota, Coronel. Na Universidade, além de estabelecer laços de amizade com Juan Carlos Marín, um dos raros intelectuais marxistas realmente dedicado a questôes de estratégia militar; Alejandro Saavedra, estudioso da questão agrária, sobre a qual sustentava teses extremamente originais; Luís Vitale, que se esforçava por resgatar a história das lutas de classes no Chile; Guillermo Briones, cientista político de formação tradicional, mas sempre aberto ao novo; Júlio López e José Carlos Valenzuela, que chegavam da Polônia, entusiasmados com Kalecki; Nestor D'Alessio e outros, ministrei vários cursos, por motivação política e acadêmica.
Entre eles, cabe destacar o de Sociologia Política, que resgatava minha experiência em Brasília; Sociologia da América Latina, em que capitalizava meus estudos no México, e Métodos e Técnicas de Estudo e Exposição, que tivera uma primeira versão em CONESCAL, com o fim de preparar arquitetos e engenheiros para a compreensão das quest es sociais, e que assumiu em Concepción, voltado para jovens militantes, o propósito de disciplinar seu raciocínio, adestrá-los na pesquisa e habilitá-los a dominar diferentes formas de exposição, como o panfleto, o artigo, o discurso oratório, o relatório, o ensaio. Participei também do curso de Ciências Sociais que o Instituto realizava fora de suas dependências, nas faculdades e escolas de engenharia, medicina, serviço social, geologia, matemática, etc., cumprindo, para a esquerda universitária, o papel de instrumento de politização de setores estudantis menos sensíveis, em princípio, aos problemas sócio-políticos; minha contribuição consistiu, principalmente, em modificar o enfoque pedagógico, buscando transformar o curso numa reflexão política baseada na problemática própria de cada profissão e, na medida do possível, vertida na sua linguagem.
Nesse contexto, minha produção escrita viu-se bastante prejudicada. No curso daquele ano, escrevi apenas dois textos para publicação: o prefácio ao livro de Arraes e um artigo intitulado "Os movimentos estudantis na América Latina", destinado à recém-criada revista do Instituto, Ciência Social (que saiu com muito atraso e não passou do primeiro número), que se publicou na França, naquele ano, em Temps Modernes, e na Venezuela, na revista Rocinante, republicando-se, mais tarde, no México e na Colômbia, até onde sei.
O ambiente, ao mesmo tempo exaltado e sufocante, de Concepción, seu provincianismo e a eleição de Allende para a presidência, que abria no país um processo político de grandes perspectivas, levaram-me a -aceitando convite do CESO- trasladar-me para Santiago, a fins de 1970. Numa universidade que, como a do Chile, passava ainda pelo processo de reforma, os procedimentos e a nomenclatura eram fluidos: um concurso de títulos decidiu a minha admissão e classificação como pesquisador sênior. Sem me subtrair à maré alta de politização que caracterizava então o Chile, eu vivi ali uma das fases mais produtivas da minha vida intelectual.
A formação do governo da Unidade Popular contribuiu, de certo modo, para isso. Carente de quadros, a esquerda no poder esvaziou as universidades em benefício da administração pública. No CESO, isso conduziu à promoção do pessoal jovem (Roberto Pizarro, então júnior, na qualidade de único chileno do pequeno grupo que restara, assumiu a direção, mais tarde transferida a Theotônio) e à incorporação de novos membros, na maioria estrangeiros, do que resultou uma grande renovação. A instituição alcançou o ápice da sua trajetória entre 1972-1973; além de mim, Theotônio e Vania, ela contava com Vasconi, Frank, Marta Harnecker, Júlio López e, mais jovens, Pizarro, Cristián Sepúlveda, Jaime Torres, Marco Aurélio Garcia, Alvaro Briones, Guillermo Labarca, Antonio Sánchez, Marcelo García, Emir Sader e Jaime Osorio, lista à qual haveria que acrescentar os temporários: Régis Debray, recém-libertado de sua prisão na Bolívia; os cubanos Germán Sánchez e José Bell Lara, afastados por algum tempo de Havana, após o freio aplicado a Pensamiento Crítico, e o mexicano Luís Hernández Palacios, cuja amizade eu reencontraria ao retornar, tempos depois, ao México.
O CESO foi, em seu momento, um dos principais centros intelectuais da América Latina. A maioria da intelectualidade latino-americana, européia e norte-americana, principalmente de esquerda, passou por ali, dele participando mediante palestras, conferências, mesas-redondas e seminários. Contudo, o segredo da intensa vida intelectual que o caracterizou e que se constituiu na fonte real do seu prestígio foi a permanente prática interna de diálogo e discussão, institucionalizada nos seminários de área -as áreas temáticas eram as células da instituição- e no seminário geral e continuada nas relaçôes pessoais, que tinham por base o companheirismo e o respeito mútuo. O momento político que vivia o país, o qual tornara Santiago centro mundial de atenção e de romaria de intelectuais e políticos, fez o resto, além de incentivar o desenvolvimento de outros órgãos acadêmicos, como o Centro de Estudos da Realidade Nacional (CEREN), da Universidade Católica.
Estando o CESO adscrito à Faculdade de Economia, eu devia também ministrar cursos ali, embora sem obrigação de carga docente. Realizei três: Introdução às Ciências Sociais, cuja seção inicial, composta de três aulas, deu como resultado o ensaio "Razón y sinrazón de la sociología marxista", publicado no primeiro número da revista Sociedad y Desarrollo, lançada pelo CESO, em 1972; Ciência Política e um terceiro -ao que concorriam alunos de várias faculdades, militantes dos diferentes partidos da esquerda- intitulado Teoria del Cambio. Este último -que versava, de fato, sobre a teoria da revolução- depois de uma seção dedicada às revoluçôes burguesas, eu estudava quatro revoluçôes socialistas (soviética, chinesa, vietnamita e cubana), concluindo com algumas generalizaçôes-; gravado e, posteriormente, reelaborado, encontrava-se pronto para publicação no momento do golpe militar de 1973, quando, após a invasão do meu apartamento pelo exército, foi por este queimado, junto com os livros e outros materiais que lá estavam -inclusive uma série de entrevistas que eu fizera a Miguel Enríquez, dirigente máximo do MIR, cuja perda não deixo de lamentar.
Além de exercer alguns cargos administrativos -coordenador docente e membro da comissão de pesquisas, do conselho editorial e do conselho diretor do CESO e membro da comissão docente e de pesquisas da Faculdade- coube-me, na qualidade de coordenador de área, organizar e dirigir o seminário desta; como indiquei, cada área do CESO realizava seu próprio seminário, paralelo ao seminário geral (este, entre 1971 e 1973, centrou-se na análise da transição socialista na União Soviética, com ênfase em Lenin, tendo Marta Harnecker como coordenadora). Meus interesses de pesquisa levaram-me a propor em minha área, que o aprovou, o tema "Teoria marxista e realidade latino-americana"; iniciando-se com O Capital de Marx, o seminário deveria incluir depois as obras políticas deste, mas, pelas circunstâncias históricas, não passou da primeira parte. Não se tratava de uma simples leitura do livro, mas -para o que aproveitava a experiência feita no México- de tomá-lo como fio condutor para a discussão sobre o modo de aplicar suas categorias, princípios e leis à compreensão da América Latina. Do seminário, participavam, entre outros, Frank, Vasconi, Labarca, Marco Aurélio, Marcelo García, Cristián, Antonio Sánchez e Jaime Osorio.
Para centrar a discussão, comecei a trabalhar em um texto-base. Este tomava, como ponto de partida, o que ficou conhecido no CESO como meu "livro vermelho" - uma pasta vermelha, que reunia materiais desde 1966, incluindo esquemas de aula, anotaçôes de leitura, reflexôes à margem e informação histórica e estatística sobre a América Latina em geral e país por país, com ênfase na integração ao mercado mundial e no desenvolvimento capitalista daí resultante. A própria natureza desses materiais induziu-me a escrever um ensaio de caráter histórico, que não me satisfez: o que eu procurava era o estabelecimento de uma teoria intermédia, que, informada pela construção teórica de Marx, conduzisse à compreensão do caráter subdesenvolvido e dependente da economia latino-americana e sua legalidade específica. Voltando a trabalhar o texto (tanto a primeira versão como o "livro vermelho" se perderam também, quando da invasão do meu apartamento), procurei situar a análise num nível mais alto de abstração, relegando a notas de pé de página as raras referências históricas e estatísticas que conservei. Esta segunda versão publicou-se, ainda incompleta, em Sociedad y Desarrollo, com o título "Dialéctica de la dependencia: la economía exportadora" e, terminada, em edição mimeografada do CESO, em 1972, servindo também como base da introdução ao livro publicado por Einaudi, em 1974.
Tal como ficou, Dialéctica de la dependencia era um texto inegavelmente original, tendo contribuído para abrir novo caminho aos estudos marxistas na região e colocar sobre outras bases o estudo da realidade latino-americana. A démarche teórica que ali realizei consistiu, essencialmente, em rejeitar a linha tradicional de análise do subdesenvolvimento, mediante a qual este se captava através de um conjunto de indicadores, os quais, a seu turno, serviam para defini-lo: o resultado não era simplesmente descritivo, mas tautológico. Assim, um país seria subdesenvolvido porque seus indicadores relativos à renda per capita, à escolaridade, à nutrição, etc., correspondiam a certo nível de uma escala dada e esses indicadores se situariam a esse nível porque o país era subdesenvolvido. Tentando ir além dessa colocação enganosa, a CEPAL avançara pouco, ficando, como elemento válido de sua elaboração, a crítica à teoria clássica do comércio internacional e a constatação das transferências de valor que a divisão internacional do trabalho propicia, em detrimento da economia latino-americana.
Ao invés de seguir esse raciocínio e fiel a meu princípio de que o subdesenvolvimento é a outra cara do desenvolvimento, eu analisava em que condiçôes a América Latina havia-se integrado ao mercado mundial e como essa integração: a) funcionara para a economia capitalista mundial e b) alterara a economia latino-americana. A economia exportadora, que surge a meados do século XIX nos países pioneiros (Chile e Brasil), generalizando-se depois, aparecia, nessa perspectiva, como o processo e o resultado de uma transição ao capitalismo e como a forma que assume esse capitalismo, no marco de uma determinada divisão internacional do trabalho. Aceito isto, as transferências de valor que daí advinham não podiam ser vistas como uma anomalia ou um estorvo, mas antes como conseqüência da legalidade própria do mercado mundial e como um acicate ao desenvolvimento da produção capitalista latino-americana, sobre a base de duas premissas: abundância de recursos naturais e superexploração do trabalho (a qual pressupunha abundância de mão de obra). A primeira premissa dava como resultado a monoprodução; a segunda, os indicadores próprios das economias subdesenvolvidas. A industrialização operada posteriormente estaria determinada pelas relaçôes de produção internas e externas, conformadas sobre a base dessas premissas. Resolvida assim, no meu entender, a questão fundamental, isto é, o modo como o capitalismo afetava o cerne da economia latino-americana -a formação da mais-valia- eu passava a me preocupar com a transformação desta em lucro e com as especificidades que essa metamorfose encerrava. Algumas indicaçoes referentes ao ponto a que chegou minha pesquisa estão contidas no texto e em outros trabalhos escritos nessa época, mas eu só solucionaria realmente o problema alguns anos depois, no México.
Lançado à circulação, meu ensaio provocou reaçôes imediatas. A primeira crítica veio de Fernando Henrique Cardoso, em comunicação feita ao Congresso Latino-Americano de Sociologia (onde eu recém apresentava o meu texto completo), que se realizou em Santiago, em 1972, e publicada na Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales. Defendendo com zelo a posição que conquistara nas ciencias sociais latino-americanas, e que ele acreditava, ao parecer, ameaçada pela divulgação do meu texto, e referindo-se ainda ao artigo que saíra em Sociedad y Desarrollo, que não incluía a análise do processo de industrialização, a crítica de Cardoso inaugurou a série de deturpaçôes e mal-entendidos que se desenvolveu em torno ao meu ensaio, confundindo superexploração do trabalho com mais-valia absoluta e me atribuindo a falsa tese de que o desenvolvimento capitalista latino-americano exclui o aumento da produtividade. Respondi a esses equívocos no post-scriptum que - com o título de En torno a Dialéctica de la Dependencia - escrevi para a edição mexicana de 1973.
Mas se as reaçôes adversas ao meu ensaio não se fizeram esperar, o interesse e o aplauso tampouco. Seja através da versão incompleta da revista, seja da edição mimeografada, ele obteve grande difusão, no Chile e no exterior -para o que concorreu o fluxo constante de visitantes que se dirigia ao CESO. Cedo me dei conta de que não poderia manter o texto sem publicar, como era minha intenção inicial, preocupado como estava em concluir a pesquisa que o texto apenas anunciava. Em setembro de 1972, tendo viajado ao México para participar dos cursos de verão promovidos pela Faculdade de Ciências Políticas e Sociais, da UNAM, deparei-me com o fato de que ele era já objeto de seminários e grupos de estudos, constituindo-se inclusive em tema da interessante tese de graduação em economia, de Raimundo Arroio Júnior e Roberto Cabral Bowling, El proceso de industrialización em México, 1940-1950. Un modelo de superexplotación de la fuerza de trabajo, defendida em 1974.
Urgido por Neus Espresate, co-proprietária da editora ERA e velha amiga, a liberá-lo para publicação, achei melhor ceder, embora, dado o clima polêmico que o cercava, me parecesse necessário fazer-lhe um prefácio. Este acabou convertido em posfácio; nele, procurei esclarecer as razôes do método adotado (que, ao partir da circulação para a produção, daí retornando à circulação, já me valia o epíteto de "circulacionista"), justificar o uso de categorias marxistas na análise de uma formação capitalista ainda em gestação e dissipar as confusôes surgidas sobre a noção de superexploraçào do trabalho, além de avançar algumas consideraç es sobre a tendência da economia dependente a bloquear a transferência dos aumentos de produtividade aos preços, fixando como mais-valia extraordinária o que poderia vir a ser mais-valia relativa.
A parte as ediçôes portuguesas (Centelha, 1976, e Ulmeiro, 1981), a edição mexicana, publicada em 1973, é a única que inclui esse posfácio, sendo também uma das raras publicaçôes autorizadas do meu ensaio. Efetivamente, como eu temia, as ediçôes piratas se sucederam, na França, na Argentina, na Espanha, em Portugal. Cheguei a autorizar, também, a alemã, incluída em um reading organizado por Dieter Senghaas, que se publicou em 1974, e a tradução holandesa desse reading, de 1976. O contrato firmado com uma editora japonesa não deu, pelo que sei, resultado.
A divulgação internacional de Dialéctica de la dependencia deveu-se, em parte, a que apresentei o texto como paper na Conferência Afro-Latino-americana, que reuniu, em Dakar, em setembro de 1972 -por iniciativa do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Planificação (IDEP), órgão da ONU, dirigido por Samir Amin- estudiosos dos dois continentes, assim como da Europa. Na viagem de volta, detive-me na Itália, onde, no Instituto de Estudos da Sociedade Contemporânea (ISSOCO), dirigido por Lelio Basso, participei de um seminário sobre a América Latina. Daí resultou um texto de certo interesse,La acumulación capitalista dependiente y la superexplotación del trabajo, que teve apenas uma edição mimeografada no CESO, mas que circula, ainda hoje, em círculos estudantis e de pesquisa da UNAM e outras instituiçôes de ensino mexicanas. Em minha estada na Itália, pude dialogar intensamente com grande número de intelectuais dissidentes do PCI, entre os quais Rossana Rossanda, Lucio Magri, Giovanni Arrighi e Luciana Castellini.
Minha relutância em publicar Dialéctica de la dependencia devia-se ã consciência que eu tinha de que o texto era insuficiente para dar conta do estado de minhas investigaçôes e ao meu desejo de desenvolvê-lo. Essa relutância foi vencida, em parte, como indiquei, pela dificuldade que tive para impedir sua difusão e, em parte, porque o avanço do processo chileno me convocava de modo crescente a uma participação mais ativa, obstaculizando minha concentração nas quest es teóricas gerais que me preocupavam. A partir de fins de 1971, assumi responsabilidades políticas cada vez maiores, que acabaram por me absorver.
Uma das questôes candentes que se colocavam no Chile de então era a da unidade da esquerda, em virtude dos problemas suscitados pela oposição UP x MIR. Juntamente com companheiros socialistas e comunistas -entre os quais, Marta Harnecker, alma da iniciativa, Theotônio, Alberto Martínez e Pío García- participei da criação e direção da revista Chile Hoy, cujo objetivo era construir um espaço adequado para o diálogo entre as correntes de esquerda, e na qual colaborei regularmente, até o golpe militar.
A princípios de 1973, teve lugar, por iniciativa do CEREN e em colaboração com o CESO, um simpósio sobre a transição ao socialismo, a que concorreram intelectuais de esquerda de todo o mundo, destacando-se Paul Sweezy, Rossana Rossanda, Lelio Basso, Michel Gutelman, além dos participantes locais. Coube-me apresentar ali um paper intitulado ¿Transición o revolución? (que se publicou, sem autorização, na revista Pasado y Presente, de Buenos Aires, com o seu título alternativo: "La pequeña burguesía y el problema del poder"), no qual eu analisava o caráter de classe do governo da Unidade Popular, além de comentar o paper de Gutelman e intervir com força sobre o que apresentou Basso (daí resultando um artigo polêmico, "Reforma y revolución: las dos lógicas de Lelio Basso", publicado em Sociedad y Desarrollo). Os materiais do simpósio se reuniram no livro Transición al socialismo y experiencia chilena, de Prensa Latinoamericana, inclusive meu paper, o comentário a Gutelman ("La reforma agraria en América Latina") e minha crítica a Basso. Depois do golpe de 1973, o livro dificilmente pode ser encontrado. Muitos materiais, porém, inclusive os textos sobre Gutelman e Basso, foram republicados em Buenos Aires, no ano seguinte, com o título Acerca de la transición al socialismo, além de serem reproduzidos em publicaçôes diversas, na Colômbia e no México.
Ainda em 1973, sob minha direção, saiu o primeiro número da revista Marxismo y Revolución, cujo segundo número, já pronto, foi destruído na gráfica, nos dias imediatos ao golpe. O que chegou a circular continha dois trabalhos meus sobre o Chile. Um era "El desarrollo industrial dependiente y la crisis del sistema de dominación", no qual, a partir do movimento econômico e, em particular, da distribuição da mais-valia, eu analisava a cisão da burguesia chilena que, expressando-se na campanha eleitoral de 1970, abrira o caminho à Unidade Popular; esse trabalho, que contempla alguns dos progressos que eu fizera em minhas investigaçôes sobre a mais-valia extraordinária, fora escrito e divulgado ao interior da esquerda antes daquele que eu apresentara no simpósio CEREN-CESO e, de um ponto de vista lógico, o precedia. O outro artigo, "La política económica de la `vía chilena'", escrito em colaboração com Cristián Sepúlveda, examinava as motivaçôes de classe da política econômica da UP e suas implicaç es; na realidade, ele se destinava a cobrir o vazamento de um texto que eu não escrevera para publicação e que, cheio de deficiências, saíra, sem minha autorização, em Critiques de l'économie politique, revista editada por Maspero (que, incorrigível, pirateou também Dialéctica de la dependencia).
Esses três ensaios se constituíam em uma análise mais ou menos estruturada sobre as causas e a atuação do governo da Unidade Popular. Eles formam o núcleo do livro que, em 1976, publiquei no México -El reformismo y la contrarrevolución. Estudios sobre Chile-, o qual, além de uma seleção dos artigos mais conjunturais escritos para Chile Hoy, reuniam ainda dois outros ensaios, ambos de 1974. Um deles examinava a crise e a queda do governo da UP, tendo aparecido, em versão preliminar, escrita no Panamá, numa publicação de NACLA, com o título "Chile: The Political Economy of Military Fascism", sendo republicado, em versão definitiva, no México, sob a denominação de "Economía política de un golpe militar".
Essa mudança de título não era aleatória. Após haver manejado, inicialmente, a noção de "fascismo militar", acabei por descartá-la, convencido de que a caracterização da contra-revolução chilena (e latino-americana, em geral) como fascista mistificava a natureza real do processo e visava a justificar a formação de frentes amplas, em que a burguesia tendia a assumir papel hegemônico. Naquele momento, parecia ainda possível lutar por uma política de alianças que não implicasse a subordinação das forças populares à burguesia, uma vez que a esquerda detinha ainda, localizadamente, capacidade de ação na América Latina e estava em ascenção na Europa ocidental, na Africa e na Asia. As derrotas que ela sofreu, depois, na Europa e nos países latino-americanos, levaram ao triunfo da fórmula da frente ampla sob hegemonia burguesa, que presidiu à redemocratização latino-americana dos 80, salvo na América Central, onde prevaleceu o esquema de alianças pelo qual eu me batia. Convém notar que, ainda no Chile -como demonstra um dos artigos publicados em Chile Hoy e incluído no livro- me parecia que, independentemente dos traços fascistas que apresentava a mobilização da direita, não existiam condiçôes para um verdadeiro regime fascista. Essa discussão continuou, de resto, ao longo da década de 1970, levando-me a elaborar o conceito de Estado de contra-insurgência e, quando se podia já vislumbrar o processo de redemocratização, o de Estado do quarto poder.
O outro ensaio do livro que é posterior ao golpe, "Dos estrategias en el proceso chileno", constitui, depois do trabalho de 1967 sobre a América Latina, um de meus textos mais divulgados, sem dúvida pela fase favorável que vivia ainda a esquerda e pelo interesse que despertava o caso chileno. Escrito para o número inicial de Cuadernos Políticos, de que falarei mais adiante, publicou-se, primeiro, em Temps Modernes, sendo depois objeto de diversas republicaç es, isoladamente ou em revistas e jornais latino-americanos e europeus. A finalidade do artigo era a de -em contraposição à falsa tese que a maioria da esquerda chilena difundira no exterior, descarregando sobre o MIR a responsabilidade do golpe- analisar as duas estratégias da esquerda, durante o governo da Unidade Popular, e mostrar de que modo a tensão entre a mobilização popular que este induzira -dando, inclusive, origem aos órgãos de poder popular- e a dinâmica própria do Estado burguês, respaldada pela maioria da UP, acabara por conduzir o processo ao ponto de ruptura. Nesse contexto, MIR e PC, embora constituíssem os centros de elaboração teórica e de condução política mais influentes em seus respectivos campos, polarizando ao seu redor as demais forças da esquerda, não haviam atuado isoladamente, além de que só se poderia explicar sua atuação em função do desenvolvimento da luta de classes; a responsabilidade do golpe cabia, porém, ao imperialismo norte-americano e à burguesia chilena, podendo criticar-se o MIR e o PC apenas pelas falhas que haviam tido na implementação de suas respectivas estratégias.
Da minha produção, nesse período, é necessário mencionar, ainda, três trabalhos. O primeiro, centrado sempre na reflexão sobre o que ocorria à minha volta, é o prefácio ao livro de Vania Bambirra, La revolución cubana: una reinterpretación, editado em 1973 (e, com o desaparecimento da edição, apreendida em sua maior parte na gráfica, republicado no México, em 1974). Nascido ao calor dos debates que se travavam no Chile sobre a questão, seu propósito era contribuir à caracterização do problema do poder em Cuba, o que me levava a reelaborar os conceitos de revolução democrática e de revolução socialista -tema crucial nas discussôes marxistas em geral e, no Chile de então, em particular- e buscar estabelecer entre eles novas relaçôes.
Os outros dois trabalhos referiam-se ao Brasil, inserindo-se no contexto da vida política que mantinham, em Santiago, os núcleos de exilados. "La izquierda revolucionaria brasileña y las nuevas condiciones de la lucha de clases" retoma a análise da atuação da esquerda, que eu iniciara no último capítulo deSubdesarrollo y revolución. Mas com uma diferença. "Vanguardia y clase" fora escrito em 1969, quando a luta armada apenas começava e a intelectualidade de esquerda, por seguidismo ou por medo, a aplaudia ou, na melhor das hipóteses, se calava; eu me sentia, portanto, não só em liberdade, mas inclusive no dever de criticar as concepçôes e a prática da esquerda armada, alertando-a para o que poderia daí advir. Em 1971, porém, quando escrevo o segundo ensaio, era já evidente o fracasso da empreitada e, de todos os lados, choviam as críticas à esquerda armada, o que me levou a reivindicá-la - embora sem renunciar à análise do seu desempenho. Esse ensaio destinou-se à coletânea organizada por Vania Bambirra e publicada por Prensa Latinoamericana, naquele ano, com o título Diez años de insurrección en América Latina; excluindo Vania, Moisés Moleiro e eu, os autores -todos eles, intelectuais conhecidos- preferiram assinar seus textos com pseudônimo, fato compreensível, se se consideram as condiçôes políticas que reinavam na maioria dos países latino-americanos. O golpe de 1973 fez do livro uma raridade, ficando dele, apenas, a edição italiana de Mazzota, de Milão, publicada em 1973, com o título L'esperienza rivoluzionaria latinoamericana; meu ensaio, porém, foi incluído -com o título "Lucha armada y lucha de clases"- na 5a. edição revisada e ampliada de Subdesarrollo y revolución, de 1974.
O outro trabalho, escrito a fins de 1971 ou princípios de 1972, resultou da intervenção que fiz em um seminário político da esquerda brasileira, em Santiago, e se publicou , primeiro, em Monthly Review, com o título "Brazilian Sub-Imperialism", republicando-se nas ediçôes dessa revista em italiano e em castelhano (esta, impressa agora em Bogotá), assim como na revista mexicana Síntesis. Nele, eu examinava a política econômica da ditadura e precisava o que, a meu ver, constituía-se para ela em limitaçôes objetivas: a estreiteza do mercado interno, a superexploração do trabalho e as possibilidades do Estado, enquanto promotor de investimento e de demanda. Num plano mais geral, eu mostrava as dificuldades que os Estados Unidos criavam para a implementação da política subimperialista e indicava a conveniência de distinguir, na evolução desta, dois períodos, que tinham 1968 como marco divisório; por outro lado, o ensaio punha em evidência, por primeira vez, o papel das transferências de renda à classe média, a partir daquele ano, com o fim de paliar a estreiteza do mercado interno; essas duas proposiçoes serviram de insumo explícito ou implícito a elaboraçôes de outros autores sobre a economia e a política externa brasileira. O ensaio foi incorporado também, com o mesmo título, à 5a. edição de Subdesarrollo y revolución.
Meu exílio chileno correspondeu, assim, à minha chegada à maturidade, no plano intelectual e político. Os acontecimentos que marcaram o seu fim -o golpe militar de 11 de setembro, a experiência do terrorismo estatal em seu mais alto grau, os dias passados na embaixada do Panamá, onde cerca de duzentas pessoas faziam um esforço disciplinado e solidário para coexistir em um pequeno apartamento, sob o ruído de bombas e tiroteios- foram vividos com naturalidade, como contingências de um processo cujo significado histórico estava perfeitamente claro para mim. A meados de outubro de 1973, mais uma vez desprovido de qualquer documentação, viajei para o Panamá.

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