quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

MEMORIA - "1. O começo"


Por Ruy Mauro Marini
Fuente: Archivo de Ruy Mauro Marini.
O mundo de amanhã é o nosso mundo.
Em seu nome, exigimos que se façam os grandes sacrifícios
e as renúncias forçadas
e a arregimentação
geral.

(Excerto de um poema de juventude)





Advertência


Este texto foi escrito para atender uma exigência acadêmica da Universidade de Brasília. Sua finalidade é a de dar conta de minha vida intelectual e profissional, razão pela qual as referências de ordem pessoal ou política que nele se incluem têm o propósito de mera contextualização. Em nenhum momento, eu pensei na possibilidade de sua publicação, havendo limitado a sua circulação a pessoas para as quais ele pode, a meu ver, revestir algum interesse -essencialmente, familiares e amigos mais chegados, assim como estudantes que manifestaram especial curiosidade em relação ao meu trabalho.
1. O começo
Nasci em 1932. Por minha origem, sou bem um produto das tendências profundas que determinaram o surgimento do Brasil moderno, que emergiu naquela década. Meu pai era o primeiro filho de um alfaiate artesão de Gênova e de uma camponesa da Calábria, que já o trouxeram concebido, ao emigrar para o Brasil, em 1888; minha mãe, filha caçula de uma tradicional família de latifundiários mineiros, acompanhou, menina, a mudança de meu avô de sua fazenda, perto de Livramento, para Barbacena, após a quebra que sofreu com a abolição da escravatura, e ali assistiu à dilapidação dos restos da sua fortuna, em almoços e jantares que reuniam habitualmente não menos de vinte pessoas. Professor de matemática na Escola Agrícola local, meu pai, depois do casamento e estimulado pela energia de minha mãe, ascendeu socialmente, formando-se em Direito e ingressando, por concurso público, à casta dos então chamados "príncipes da República" - os fiscais de imposto de consumo. Liberal na juventude, ele adaptou-se bem - embora mais por laços pessoais e familiares - ao clã local vinculado ao Estado Novo e, mais tarde, ao PSD. A imagem que deixou foi a de um homem simples, severo e surpreendentemente -se se têm em conta as tentaçôes a que seu cargo o expunha-honesto.
Após receber a boa formação que o ensino público proporcionava, principalmente no terreno humanístico -em sete anos de curso ginasial e científico no Colégio Estadual de Barbacena, fiz quatro de latim e sete de português, inclusive dois anos dedicados à literatura brasileira e portuguesa, e aprendi a ler inglês, francês e espanhol, além de obter uma boa base em matemática, história e geografia, e conhecimentos um tanto antiquados (como eu descobriria logo) em física, química e biologia- transferi-me para o Rio, em 1950, para me preparar para o vestibular de Medicina. A mudança alterou meus planos. Embora, no cursinho, eu me fosse atualizando em ciências físicas e naturais, estas não eram o meu forte e perdiam de longe para as atraçôes que a cidade me oferecia em matéria de cinema, teatro, praias e boemia. A experiência de um emprego provisório -como recenseador no Censo Demográfico daquele ano- fez-me tomar gosto pela independência e levou-me a, deixando os estudos, ocupar cargos menores, sucessivamente, na Central do Brasil, no Ministério da Aeronáutica e no Instituto de Aposentadoria e Pensôes dos Industriários, onde, havendo entrado também por concurso, acabei por ficar. Traduçôes, em geral do inglês, de matérias para jornais e agências de notícias ou de histórias em quadrinhos, revisão de textos para impressão, etc., permitiam que, sem grandes apertos, eu me entregasse à minha maior paixão - os livros. Junto à experiência de vida que eu adquiri, longe da casa de meu pai e do círculo de amigos de infância, aqueles foram anos que eu dediquei a completar minha formação, principalmente em literatura, poesia e teatro, história e filosofia.
Só em 1953 eu voltaria a me preocupar com a formação escolar. Mas as vocaçôes para as ciências humanas não tinham, então, curso fácil. O ensino de economia apenas se iniciava e se confundia muito -tradição com a qual nunca chegamos a romper totalmente, no Brasil- com o de contabilidade. A Faculdade de Filosofia não abria mais horizonte que o de vir a ser professor de ensino médio. O grande centro de formação humanística, no Rio daquela época, continuava sendo a Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. Foi para lá que eu me dirigi.
Dos cursos, ficaram na minha memória com maior relevo as aulas brilhantes de Hermes Lima, assim como de Pedro Calmon -estas últimas, menos substanciosas- e as exposiçôes fascinantes, embora obscuras e algo confusas, de um professor de que não recordo o nome, que substituía Leônidas de Rezende na cátedra de Economia Política. Mas, aluno do curso noturno, o mais politizado e a que concorriam pessoas mais maduras, muitas já bem sucedidas em sua profissão, foi com meus colegas que aprendi mais. Particularmente no que era o coração da Faculdade, o ponto onde idéias e inclinaçôes assumiam perfil mais acusado, enfrentando-se com determinação: o CACO, expressão maior do movimento estudantil da década de 50, movimento que fazia então o supremo esforço de -superando a ideologia meramente democrática da década anterior- forjar-se um projeto de país, ao calor das campanhas nacionalistas e desenvolvimentistas. Apesar da distância que eu tomava deles -irritado, como todos os independentes de esquerda, com a sua prática instrumentalista e prepotente- justiça seja feita aos comunistas que ali militavam (sob a direção de um jovem que se chamava nada menos que Lenine!), os quais, não importa quão minoritários e sectários fossem, muito me ensinaram sobre o Brasil e sobre o mundo.
Mas era o estudo das ciências humanas que me interessava e a Nacional de Direito não me podia dar mais que o que estava dando, com as limitaçôes que além disso me impunha o emprego diurno. Foi quando a Fundação Getúlio Vargas, com o apoio da OEA, decidiu -após iniciá-la com uma turma experimental- dar um grande passo na implementação da Escola Brasileira de Administração Pública, abrindo concurso de ingresso em todo o Brasil para jovens que estivessem dispostos a dar-lhe tempo integral, os quais receberiam bolsa de estudos. A própria EBAP oferecia, no Rio, um cursinho que fiz e que me facilitou aprovar o concurso em primeiro lugar, o que me garantia a bolsa. O apoio oportuno de um "pistolão" permitiu-me obter do IAPI licença remunerada para fazer o curso, que foi considerado como "de interesse do serviço". Abria-se uma nova época em minha formação.
Nova época, em todos os sentidos. Frente ao clima intelectual tradicionalista e rarefeito que privava na Universidade de então, a EBAP abria amplo espaço às ciências sociais e recrutava seu corpo docente na intelectualidade mais jovem, que a universidade mandarinesca excluía, ou no exterior. Figura marcante era ali Alberto Guerreiro Ramos, professor de Sociologia, crítico irreverente de tudo que cheirasse a oficialismo, eclético incorrigível, aberto às novas idéias que se originavam de Bandung e da CEPAL; sua influência sobre mim, naqueles anos, foi absoluta. Diferente, mas também decisiva, foi a influência que exerceu Julien Chacel, professor de Economia, rigoroso, ortodoxo, cuja timidez raiava a agressão e que recém-chegava da França para iniciar uma carreira acadêmica irreprochável. A François Gazier, que viria a ser o primeiro diretor do futuro Instituto de Estudos do Desenvolvimento Econômico e Social (IEDES), de Paris, e que ocupou a cadeira de Ciência Política, além de suas aulas sempre exatas e bem fundadas, devo minha iniciação nas regras do método de análise e exposição, o produto mais genuino do gênio francês. Entre muitos outros nomes a mencionar, é justo registrar os de Marcos Almir Madeira, graças a quem conheci os cursos e os chás da Academia Brasileira de Letras; Marialice Pessoa, que, num português americanizado, buscava transmitir-nos sua fé inquebrantável em Boas, Linton e Herskovitz; Mário Faustino, sempre borbulhante de vida, malícia e ironia; José Rodrigues de Senna, figura humana admirável, e, last but not the least, Benedito Silva, diretor da Escola, cuja dedicação ao belo projeto que ela representava não foi por mim cabalmente compreendida, naquele momento.
A EBAP proporcionou-me o atingimento do que eu vinha buscando, i. e., a possibilidade de iniciar-me de maneira séria no estudo das ciências sociais; já no segundo ano do curso, eu começava a atuar como professor assistente de Guerreiro Ramos, em seu curso de sociologia na Escola de Serviço Público do DASP. É natural que o diploma de Administrador que ela me daria não tivesse a meus olhos a menor importância e que, bem antes de concluir o curso, eu me preocupasse com o modo pelo qual seguir adiante. A orientação e o apoio pessoal de Guerreiro Ramos me encaminharam para a França, de cujo governo obtive bolsa de estudos, sustentado em meu pedido por Gazier e por Michel Debrun, que o substituira. Segui para lá em setembro de 1958, a fim de cursar o Instituto de Estudos Políticos da Universidade de Paris, o badalado SciencesPo. Mas não sem, antes, fazer uma interessante experiência em pesquisa, graças a José Rodrigues de Senna, que -chefiando, então, o setor de pesquisas da Petrobrás- deu-me a oportunidade de realizar, no norte e no nordeste do Brasil, a pesquisa nacional que êle dirigia sobre as condiçôes de vida dos trabalhadores da empresa.
Os dois anos passados na França completaram, praticamente, a minha formação. Além de me permitirem conhecer outros países, nos períodos de férias -Alemanha, Itália, Inglaterra, Suíça- assim como províncias da França, levaram-me a redondear minha cultura artística e literária e a entrar em contacto direto, i. e., como aluno, com as figuras mais notáveis das ciências sociais francesas da época, em SciencesPo (Jean Meynaud, Maurice Duverger, Georges Balandier, René Rémond, François Duroselle, Pierre Laroque, René Dumont, André Sigfried, entre outros) e na Sorbonne, IEDES e no Collège de France (Georges Gurvitch, Charles Bettelheim, Maurice Merleau-Ponty); fizeram-me, graças ao impulso dado por Jean Baby e André Amar, realizar, por primeira vez, a leitura de Hegel e o estudo sistemático da obra de Marx e aprofundar-me no estudo dos autores marxistas, Lenin principalmente; e me proporcionaram a convivência com o mundo estudantil e cosmopolita de Paris, daí nascendo amizades enriquecedoras com argelinos, peruanos, norte-americanos, mexicanos, dinamarqueses, marroquinos, alemães e, naturalmente, brasileiros e franceses.
O período que ali passei coincidiu com o auge da teoria desenvolvimentista na América Latina e no Brasil -com a qual eu me familiarizara na EBAP, pela mão de Guerreiro Ramos, havendo inclusive assistido de perto o processo de formação do ISEB (e, antes dele, do IBESP)- e com sua difusão na academia francesa, tendo Balandier como pontífice. Ao mesmo tempo, esse era o momento em que a descolonização era vivida dramaticamente pela França, mediante a derrota na Indochina e a radicalização da guerra da Argélia, provocando rupturas ao interior dos grupos políticos e intelectuais -fenômeno que acompanhei com vivo interesse, tanto mais que, em meu meio, eu convivia com jovens militantes argelinos, cambojanos e vietnamitas, além dos que provinham das colônias da Africa negra. As teorias do desenvolvimento, em voga nos Estados Unidos e nos centros europeus, se me revelaram, então, como o que realmente eram: instrumento de mistificação e domesticação dos povos oprimidos do Terceiro Mundo e arma com a qual o imperialismo buscava fazer frente aos problemas criados no após-guerra pela descolonização. Começa, então, o meu afastamento em relação à CEPAL, fortemente influenciado, ademais, pela minha crescente adscrição ao marxismo.
Isso me levaria, ainda na França, a tomar contacto com o grupo que editava, no Brasil, a revista Movimento Socialista, órgão da juventude do Partido Socialista (que publicou um artigo meu, onde ajustava contas com o nacional-desenvolvimentismo), em particular Eric Sachs, com o qual eu viria a estabelecer, a meu regresso, uma grande amizade e cuja experiência e cultura política me influenciaram fortemente. Esse grupo, com suas principais vertentes no Rio, São Paulo e Belo Horizonte, constituirá, mais adiante, a Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (POLOP), primeira expressão no Brasil da esquerda revolucionária que emergia em toda a América Latina. Cabe observar, aqui, que o interesse que a Revolução cubana despertara na França, dando lugar a intensa cobertura da imprensa e à publicação de livros significativos, como o de Sartre, era muito maior que o que se verificava no Brasil -fato que constato com surpresa, ao regressar. Essa situação só se modificará depois da tentativa de invasão norte-americana e da decorrente posição cubana, em favor do marxismo e da URSS. A gestação da esquerda revolucionária brasileira e latino-americana -particularmente na Argentina, no Peru, na Venezuela e na Nicarágua- não é, como se pretende, efeito da Revolução cubana, mas parte do mesmo processo que deu origem a ela -independentemente de que passe a sofrer forte influência sua, nos anos 60.
A meados de 1960, voltei ao Brasil e reassumi meu cargo no IAPI, passando a trabalhar no setor de organização e métodos da Diretoria de Pessoal, o qual, sob a direção de José Rodrigues de Senna, se dedicava então à mecanização do arquivo de pessoal. Apesar de ser contemplado com uma função gratificada, o salário não era alto e forçou-me a buscar complementação. A partir de setembro, passei a ser o correspondente da noite na agência cubana de notícias Prensa Latina, dirigida por Aroldo Wall, de quem me tornei amigo, e ali permaneci um ano. Foi nessa condição que acompanhei -virando, às vezes, até à madrugada- o governo Jânio Quadros, a crise da renúncia e a primeira fase do governo Jango. Por outra parte, levado por Aluizio Leite Filho, eu me ligara, desde meu regresso, ao grupo da União Metropolitana de Estudantes que publicava O Metropolitano, como encarte dominical de O Diário de Notícias, com total independência, e que contava, entre seus quadros mais brilhantes, com César Guimarães, Carlos Diegues, Sílvio Gomes, Rubem César Fernandes, Carlos Estevam Martins, entre outros. Juntos, fizemos um jornal estudantil que marcou época, pelo estilo vibrante, a novidade dos temas, a abordagem direta (inclusive no campo da política nacional e internacional) e até por sua apresentação redacional e gráfica, que influenciaria o processo de renovação da grande imprensa, que se verifica mais tarde.
Em Prensa Latina e em O Metropolitano fiz o meu aprendizado jornalístico, tornando efetiva uma das facetas da minha vocação intelectual, que eu continuaria desenvolvendo no futuro. A guisa de registro, vale recordar que, em um dos meus raros trabalhos de reportagem, eu cobri, por Prensa Latina, o Congresso Nacional de Camponeses, que teve lugar em Belo Horizonte, em 1961, e tornei pública, através de O Metropolitano, a luta surda que se travava entre o PCB e as Ligas Camponesas de Julião -um dos pontos fortes do trabalho de massas da esquerda revolucionária. Essa matéria, além de surpreender pela novidade, ao trazer à luz do dia assuntos da esquerda (que, fora de sua própria imprensa, eram tabu nos grandes meios de comunicação), favoreceu o desenvolvimento da luta ideológica e política então em curso, ao torná-la explícita.
Em abril de 1962, criou-se a Universidade de Brasília, sob a condução entusiasta de Darcy Ribeiro, cercado por figuras notáveis, como Anísio Teixeira, Oscar Niemeyer, Cláudio Santoro, e uma plêiade de jovens intelectuais recém-formados, como Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, Theodoro Lamounier, Carlos Callou, Luiz Fernando Victor, Levi Santos, José Paulo Sepúlveda Pertence. Rompendo com o imobilismo e o sestro mandarinesco da Universidade tradicional, a UnB inovou em sua concepção jurídica, constituindo-se em fundação, o que ampliava sua independência em relação ao Estado, e adotando o regime celetista, com o que visava a evitar a burocratização do corpo docente; em sua concepção orgânica, baseada em departamentos e institutos, ao invés da cátedra e faculdade próprias da universidade tradicional; em sua concepção pedagógica, que privilegiava o trabalho docente em equipe, via aulas maiores e menores, a relação ensino-pesquisa, o impulso aos cursos livres, debates e seminários e a abertura de cursos de pós-graduação; em sua concepção de pesquisa, que valorizava o entorno regional; e em sua concepção da relação universidade-sociedade, que a levava a abrir-se ao exterior, promovendo cursos de extensão e, inclusive, de formação profissional e capacitação sindical.
Integrando-me à UnB em setembro de 1962, como auxiliar de ensino -em 1963, passaria a professor assistente- realizei ali uma das experiências mais ricas da minha vida acadêmica, já como docente, lecionando com Victor Nunes Leal, Lincoln Ribeiro e Theotônio dos Santos, as cadeiras de Introdução à Ciência Política e Teoria Política, a nível de graduação, e co-dirigindo o seminário de pós-graduação sobre Ideologia Brasileira; já como estudante, preparando minha tese de doutorado sobre o bonapartismo no Brasil (cujo texto e materiais se perderiam em 1964, quando da primeira invasão da Universidade pelo exército); já participando das atividades diversas que a Universidade promovia, tanto internamente como no plano da extensão; já, finalmente, convivendo com os colegas já mencionados, além de outros - como Andre Gunder Frank, que ali aportou em 1963. Cabe assinalar, aqui, que, embora já possuisse um pensamento inquieto e original, formado ao calor de seu contacto com Paul Baran, Paul Sweezy, Harry Huberman, em Monthly Review, foi então que Frank - absorvendo os novos elementos teóricos, que surgiam no seio da esquerda revolucionária brasileira -amadureceu as teses que exporia, de maneira provocativa e audaz, em seu Capitalism and Underdevelopment in Latin America, publicado em 1967, livro que representa um marco do que viria a chamar-se de "teoria da dependência".
Na realidade, e contrariando interpretaçôes correntes, que a vêem como subproduto e alternativa acadêmica à teoria desenvolvimentista da CEPAL, a teoria da dependência tem suas raízes nas concepçôes que a nova esquerda -particularmente no Brasil, embora seu desenvolvimento político fosse maior em Cuba, na Venezuela e no Peru- elaborou, para fazer frente à ideologia dos partidos comunistas. A CEPAL só se converteu também em alvo na medida em que os comunistas, que se haviam dedicado mais à história que à economia e à sociologia, se apoiaram nas teses cepalinas da deterioração das relaçôes de troca, do dualismo estrutural e da viabilidade do desenvolvimento capitalista autônomo, para sustentar o princípio da revolução democrático-burguesa, anti-imperialista e antifeudal, que êles haviam herdado da Terceira Internacional. Contrapondo-se a isso, a nova esquerda caracterizava a revolução como, simultaneamente, anti-imperialista e socialista, rechaçando a idéia do predomínio de relaçôes feudais no campo e negando à burguesia latino-americana capacidade para dirigir a luta anti-imperialista. Foi no Brasil da primeira metade dos 60 que essa confrontação ideológica assumiu perfil mais definido e que surgiram proposiçôes suficientemente significativas para abrir caminho a uma elaboração teórica, capaz de enfrentar e, a seu tempo, derrotar a ideologia cepalina -não podendo ser, pois, motivo de surpresa o papel destacado que nesse processo desempenharam intelectuais brasileiros ou ligados, de alguma forma, ao Brasil.
A nível teórico, isso só viria a dar todos os seus frutos após o golpe militar de 1964, quando, limitada em sua militância, a jovem intelectualidade brasileira encontraria tempo e condiçôes para dedicar-se plenamente ao trabalho acadêmico e se veria, de fato, convocada a isso pela situação que se passou a viver em toda a América Latina, assolada pela contra-revolução. No começo da década, a teorização encontrava-se ainda estreitamente ligada ao combate político e os êxitos ou fracassos se mediam através de indicadores muito concretos. No caso da UnB, vale ressaltar que a esquerda revolucionária se constituiu na força principal do nascente movimento estudantil de Brasília, hegemonizando a Federação de Estudantes que se criou, e -fato inédito no Brasil e na América Latina- de um significativo movimento docente, que deflagrou, em 1963, a primeira greve de professores universitários de que temos notícia, a qual culminou com a formação de uma pioneira Associação de Professores, em cuja direção a nova esquerda era absolutamente majoritária. Seria um erro pensar que ela ficou restrita ã universidade: a nova esquerda vinculou-se ao sindicalismo militar então ascendente, principalmente ao movimento dos sargentos, e ao próprio movimento operário que se constituía na capital, a ponto de, no I Congresso Sindical de Brasília, em 1963, estar em condiçôes de bater chapa com o PCB, perdendo por escassa margem.
Minha estada em Brasília foi cortada bruscamente pelo golpe de 1964. Naquele momento, eu me encontrava no Rio, onde -sabedor de que era procurado em Brasília- permaneci, o que não impediu que eu fosse sumariamente demitido, com outros doze professores, na primeira medida tomada pela ditadura contra a universidade. Depois de escapar de ser preso, em maio, caí finalmente, em julho, em mãos do CENIMAR. Em setembro, beneficiado por habeas corpus do STF (que a Justiça militar negara, anteriormente), fui sequestrado pela Marinha e entregue ao Exército, em Brasília, por conta de outro processo que se me movia por lá. Repeti o itinerário Justiça militar-STF e obtive, em dezembro, novo habeas corpus, que desta vez foi acatado. Embora por pouco tempo: não houvesse eu deixado a cidade, discretamente, horas depois da minha libertação, e teria sido preso novamente. Após um período de clandestinidade de quase três meses, quando a pressão policial-militar sobre meus companheiros e minha família tornou-se pesada, a ponto de forçar um dos meus irmãos a passar também à clandestinidade, asilei-me na Embaixada do México, no Rio, e viajei para esse país, um mês depois.

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